Defensor da tese segundo a qual a Idade Média durou até o século 18 (e não 15), o historiador francês Jacques Le Goff é conhecido também por dar ao período uma importância que vai além de uma sociedade dominada por clérigos e senhores feudais.
No livro "Para Uma Outra Idade Média - Tempo, Trabalho e Cultura no Ocidente", lançado agora no Brasil, o medievalista de 89 anos narra o que pode ser tratado como as origens do capitalismo, numa época em que o sistema econômico não dava sequer sinais de vida.
Originalmente publicada na França em 1977, a obra é uma coletânea de artigos acadêmicos divididos em quatro partes. Duas delas tratam das concepções de tempo e trabalho na época e como a Igreja Católica precisou adaptar as visões que tinha sobre esses dois conceitos --básicos da sua teologia cristã.
A outra metade do livro aborda os temas cultura erudita e cultura popular e antropologia histórica.
Os estudos sobre o tempo e o trabalho já foram abordados em outras obras. Sobre o primeiro, por exemplo, o próprio Le Goff já abordou o assunto em "A Bolsa e a Vida" (ed. Civilização Brasileira).
'TEMPO SEM PRESSA'
O que se destaca em "Para Uma Outra Idade Média" é a forma como Le Goff descreve para o leitor --leigo, inclusive-- o significado sobre o tempo naquele mundo rural que começava a se urbanizar.
O tempo existia primeiramente de acordo com os ciclos agrícolas e noções rudimentares de marcação, como dia e noite, inverno e verão.
Seguia também os ofícios religiosos --não à toa a palavra hora se origina, no latim, de oração-- e os sinos das igrejas guiavam os moradores medievais. Como diz Le Goff, era basicamente um "tempo sem pressa".
O surgimento da figura do mercador é decisivo. Negociante que vive da usura, ele vai causar um grande conflito com a teologia da Igreja Católica, pois seu tempo se contrapõe ao religioso.
Nos preceitos que irão embasar as normas cristãs, clérigos irão tentar sustentar que a usura não podia existir, pois o ganho do mercador "supõe uma hipoteca sobre um tempo que só a Deus pertence". A condenação não se dava prioritariamente pela cobrança abusiva de juros (noção ainda presente hoje, como nos protestos da Grécia), mas sim pela "posse" que
Deus tinha (tem!) do tempo.
Na história das religiões, outras crenças também rejeitam a usura, como o islamismo e o tema é bem atual. No mês passado, por exemplo, um jogador de futebol se recusou a viajar com seu time, o inglês New Castle, por não aceitar a camisa do clube patrocinado por uma financeira.
Na obra, Le Goff descreve como zonas urbanas já estavam se consolidando a partir do século 10, como o norte da Itália e o da França, o sul da Inglaterra e a Alemanha.
Aliado ao surgimento dos primeiros sobressaltos inflacionários e a multiplicação das moedas, esses fatos irão exigir a concepção de um tempo bem diferente: aquele medido matematicamente.
Daí o aparecimento dos relógios a partir do século 14, que começam a ser instalados em torres públicas. Seus sinos irão marcar com exatidão as horas das transações comerciais e dos turnos operários, como já previa um documento de 1355, de Aire-sur-la-lys, na França.
'MORAL CALCULADORA'
Assim, o "velho sino [das igrejas], voz de um mundo que morre, vai passar a palavra a uma nova voz", a dos relógios dessa época.
Séculos antes da máxima capitalista ("tempo é dinheiro"), perder tempo passa a ser pecado grave também na Idade Média, que cria sua "moral calculadora". "O tempo que só pertencia a Deus agora é propriedade do homem."
Associada a isso está também a visão cristã do trabalho, ainda influenciada pela herança greco-romana, que vivia da escravatura e se orgulhava do ócio.
A ideologia medieval depõe contra o trabalho, pois "não era um 'valor', não havia nem palavra para designá-lo". Na cultura cristã, era "instrumento de penitência",e o homem deveria trabalhar à semelhança de Deus. "Ora, o trabalho de Deus é a Criação. Portanto, toda profissão que não cria é má ou inferior", o que se confronta com os ofícios em gestação à época.
Daí a lista de profissões ilícitas. Além do mercador havia taberneiros (que vendiam vinho) e professores (que comercializavam conhecimento e ciência, "dom de Deus", que não pode ser vendido).
Mas esses dogmas vão se alterando conforme surgem novas profissões. A lista de ofícios vetados diminui e os clérigos irão justificar até os "lucros dos mercadores", inclusive a "amaldiçoada usura". Afinal, já é a época da Reforma e os protestantes nascem lidando muito bem com o trabalho.
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