quinta-feira, 11 de abril de 2013

Nas entranhas do mercado



Por Luiz Costa Lima
Teremos de ter em conta que o autor do livro resenhado é, entre nós, pouco conhecido. O fato é estranho, porque a obra de sociologia econômica de Karl Polanyi é, sobretudo nos Estados Unidos, reconhecida e, com frequência, discutida. Por isso esta resenha não pode se restringir a discutir seu livro recém-traduzido, "A Subsistência do Homem e Ensaios Correlatos" (trad.: Vera Ribeiro, Contraponto, 382 págs.).
Em 1909, quando ainda não se previa a queda do império austro-húngaro, Polanyi era parte de um grupo que protestava por reformas. Como informa o editor brasileiro, nele estavam Béla Bartók, György Lukács, Karl Mannheim, Sándor Ferenczi, que, adultos, se destacarão na música, na filosofia, na sociologia, na psicanálise. Da lista não consta o nome de seu irmão, depois igualmente famoso, Michael Polanyi, provavelmente porque era então uma quase criança (1891-1976). O fato é que os irmãos Polanyi fazem parte de uma plêiade em que constava o tcheco Kafka (1883-1924) e os austríacos Karl Kraus (1874-1936), Hoffmansthal (1874-1929), Musil (1880-1942), Wittgenstein (1889-1951). Que outra potência moderna desaparecerá com semelhante raio luminoso?
Fiquemos com os irmãos. Porque politicamente atuante, já em 1919, Karl tem de se exilar em Viena e, com a ascensão do nazismo, sua condição de socialista e judeu o obriga, em 1933, a exilar-se na Inglaterra. Já o caçula, especialista em química física, encontrava, em 1923, melhores condições de trabalho como diretor do Instituto Fritz Haber, na Alemanha, sendo-lhe três anos depois concedida a condição de membro permanente do Instituto Max Planck. Mas sua condição de judeu o obrigará a passar para a Universidade de Manchester.
Estão portanto os Polanyi igualmente na Inglaterra. Para estreitar a notícia, refiro as obras principais de um e outro. De Karl, que escreveu menos livros, a obra principal é "The Great Transformation", publicada nos Estados Unidos em 1944, cuja repercussão o tornaria professor da Columbia University, a partir de 1947. De Michael, o "Personal Knowledge" (157), cujo subtítulo, "Towards a Post-Critical Philosophy", mostra que seu êxito como cientista não o impediu de vir a dedicar-se à filosofia da ciência, em que é bem mais conhecido.
O informe acima diz algo do contexto que envolve o autor de "A Subsistência do Homem". O interessado não encontrará correspondente em sua bibliografia em inglês: a edição brasileira, que contou com a colaboração de sua filha, Kari Polanyi Levitt, consta de parte de "The Livelihood of Man" (1977), acompanhada de uma seleção de artigos até agora só publicados em revistas especializadas, em inglês e em alemão.
O tema do "Subsistência" é o mesmo de "A Grande Transformação" (tradução brasileira de 1980, reeditada em 2000): a constituição no século XIX do capitalismo liberal e sua desagregação que culmina com a Primeira Guerra Mundial. Mas, entre os dois livros, há uma diferença básica. Podemos dizer que o "Subsistência" focaliza os bastidores da peça, isto é, como se processa o centramento da sociedade no econômico, mais propriamente, na economia de mercado. Isso é feito com um propósito evidentemente crítico. É por isso o aspecto a ser ressaltado.
Essa visada crítica encontra seu primeiro destaque na introdução do editor brasileiro: ao longo da história humana, predominam três mecanismos de integração: a reciprocidade, a redistribuição e a troca. A primeira se mostra nas sociedades iletradas, em que a atividade econômica estava correlacionada ao sistema de parentesco. O segundo supõe uma ordem política estável, em que "parte dos recursos é recolhido e redistribuído conforme o costume, a lei ou uma decisão central ad hoc". Só mediante o princípio da troca, que tem o comércio como instituição fundamental, a economia de mercado terá condições de brotar. Pois, como Polanyi dirá no primeiro ensaio correlato, "se as chamadas motivações econômicas fossem naturais, teríamos de julgar completamente antinaturais todas as sociedades antigas e primitivas".
Daí a importância dos estudos etnográficos em que Polanyi se baseará. Apenas dois exemplos: de acordo com a pesquisa de E.M. Loeb, entre os cafres, o sistema de divisão da terra torna a indigência impossível. E, para quem pense que o espírito de lucro é natural ao homem, vale a passagem de Malinowski nos "Argonautas do Pacífico Ocidental": "O ganho (…) nunca atua como um impulso para o trabalho nas condições nativas originais". Atestações semelhantes levavam Polanyi a escrever: "Essa ausência de ameaça de miséria individual faz com que a sociedade primitiva seja mais humana que a do século XIX e, ao mesmo tempo, menos 'econômica'".
Mas deixemos de lado os dois primeiros mecanismos de integração e ressaltemos o mecanismo da troca. Mesmo considerando a posição privilegiada do comércio para a realização das trocas, seria arbitrário estabelecer uma linha direta de sua existência anterior ao mundo moderno com o realce que passará a ter nesse. Antes do início da reflexão dos fisiocratas franceses, na segunda metade do século XVIII, o comércio estava reservado aos mercados locais. É a partir de Quesnay e, na Inglaterra, expandindo-se com Adam Smith, que a economia se tornou "o campo emergente da experiência", tendo a propriedade e o trabalho como seus grandes componentes.
Em vez de sintetizar o passo a passo da história, acentuo as instituições que "A Grande Transformação" apontava como básicas para a sociedade moderna: o sistema de equilíbrio entre as nações europeias, o padrão-ouro, estabilizador da moeda, o mercado autorregulado e o Estado liberal. Sua derrocada, que culmina com a Primeira Guerra e o nazifascismo, dará lugar, como maneira de manter o sistema ameaçado, à concentração capitalista, ao protecionismo e ao imperialismo.
Tanto em seu momento de equilíbrio harmonioso, no século XIX, como nas tentativas posteriores de reequilibrar a forma capitalista de vida, "o sistema de mercado caracteriza-se pelo fato de que, tornando-se a troca a 'forma de integração' prevalente, o mercado se transforma na instituição específica pela qual a economia se organiza socialmente". Isso implica a mudança radical nas relações entre sociedade e economia. Tal mudança dá lugar à diferença que Polanyi estabelece entre economia "enraizada" e "desenraizada".
Na primeira, a economia é parte das relações sociais, ao passo que na segunda a economia se autonomiza e comanda as relações sociais. É mesmo por essa posição de primazia que o sistema econômico não pode se permitir senão ser economicamente organizado. Destaquemos uma consequência daí derivada, que a introdutora da edição brasileira, a professora de sociologia econômica Michelle Cangiani, bem acentua: "(...) O sistema econômico tende a ser autorreflexivo, ou seja, aberto a informações provenientes de seu meio unicamente se puder reconhecê-las e elaborá-las de acordo com os aspectos mais gerais de sua própria organização, no intuito de preservá-los".
Aqui entra um elemento que, por pertencer ao capitalismo periférico, não poderia ser cogitado nem por Polanyi nem por sua introdutora. Vamos chamá-lo de autorreflexividade de 2º. Assim o distingo: na autorreflexividade metropolitana, o agente econômico costuma tomar medidas que não pareceriam pró-econômicas. Por exemplo, financiar instituições de pesquisas, pagar o salário de professores de universidade de sua eleição, criar fundos para bibliotecas especializadas, financiar concertos ou exposições etc. etc. Assim o faz porque sabe que sua possibilidade de reconhecimento social e de êxito empresarial aumentam com a satisfação de necessidades não estritamente econômicas.
Já a autorreflexividade de 2º grau se caracteriza pelo oposto: não só seu agente ignora o que não seja lucrativo como converte as instituições culturais ligadas à sua empresa em instrumentos de marketing. Pois, na periferia, o mercado consegue ser mais voraz que em sua matriz.

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