Por Alvaro Costa e Silva
RESUMO Em 1963, o ex-delegado lançou seu 1º título, o volume de contos
"Os Prisioneiros", iniciando uma obra que conquistou leitores e seguidores com seu registro seco da violência. O autor prepara novo livro e perdura como influência na literatura urbana brasileira, apesar das críticas negativas à sua produção recente.
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"A condessa Bernstroff usava uma boina onde pendurava uma medalha do kaiser. Era uma velha, mas podia dizer que era uma mulher nova e dizia. Dizia: põe a mão no meu peito e vê como é duro. E o peito era duro, mais duro que os das meninas que eu conhecia." Com essas linhas se abre "Fevereiro ou Março", primeiro conto de
"Os Prisioneiros", livro inaugural da obra de Rubem Fonseca, que completa 50 anos.
Em outubro de 1963, começava com elas a "literatura brutalista" e o "realismo feroz"que se estenderiam sobre gerações posteriores de influenciados -e de imitadores. "Sabe-se que Rubem Fonseca, ao contrário dos discípulos, não se repetiu por afagos constantes ao vitorioso estilo inicial, tornando-o vicioso e viciado. O ficcionista se distancia dele para se tornar complexo e inimitável", avalia o crítico e escritor Silviano Santiago.
Como um de seus personagens prisioneiros de si mesmos, mas sobretudo da arte de narrar, Rubem Fonseca continuou escrevendo, sem ligar para estragos ou conquistas. Aliás, continua: uma nova coletânea de textos breves, a 14º da carreira, está no forno.
"Amálgama" deve chegar às livrarias entre o fim de agosto e o princípio de setembro. Além dos contos, informa Janaína Senna, da Nova Fronteira, o volume inclui poemas, totalizando 34 textos, que, conforme resume a editora, "tratam de assuntos os mais variados, mais especialmente da própria atividade do escritor, da velhice, de deformidades físicas e de diferenças sociais".
SURPRESA
Ao estrear, o autor desconhecido aprontou mais de uma surpresa. Sua editora, a pequena GRD, do baiano Gumercindo Rocha Dorea, limitara-se, até o início da década de 1960, a promover obras de e sobre Plínio Salgado (líder do movimento integralista).
A publicação de "Os Prisioneiros" -que estampava na capa uma ilustração de Zeca Fonseca, filho do autor, então com seis anos- era parte de uma guinada na linha editorial, que incluía o lançamento de outros livros de ficção (entre eles, os romances "O Valete de Espadas", de Gerardo Melo Mourão, e "Guia Mapa de Gabriel Arcanjo", de Nélida Piñon) e de uma pioneira coleção de ficção científica.
Naquele 1963 outro contista que se tornaria notável, João Antônio, fez também sua estreia, com "Malagueta, Perus e Bacanaço". No romance, "Kaos", de Jorge Mautner, levou o Prêmio Jabuti, e "O Braço Direito", obra-prima de Otto Lara Resende, passou quase despercebida. Na crônica, Sérgio Porto mostrou "A Casa Demolida". No plano internacional, marcou o ano de "Rayuela" ("Jogo da Amarelinha"), romance-desmontável de Julio Cortázar, marco do chamado "boom" latino-americano.
O advogado e ex-delegado de polícia José Rubem Fonseca, mais conhecido pelos amigos que nem sequer o imaginavam escritor como Zé Rubem, foi considerado "a revelação do ano" pelo "Jornal do Brasil", em crítica assinada por Fausto Cunha. Wilson Martins, em sua coluna no suplemento literário de "O Estado de S. Paulo", foi mais longe: saudou-o como renovador do conto brasileiro "no momento mesmo em que estaríamos inclinados a considerá-lo esgotado".
"Os Prisioneiros" já trazia a essência da brutalidade e da ferocidade diagnosticadas mais tarde por dois dos maiores críticos literários do país, Alfredo Bosi e Antonio Candido, respectivamente.
Em "Fevereiro ou Março", um halterofilista vende o próprio sangue; em "Duzentos e Vinte Gramas", a autopsia de uma linda mulher é descrita sem compaixão; em "Teoria do Consumo Conspícuo", um casal de quase amantes discute a necessidade de uma operação plástica de nariz. Tudo narrado em diálogos poderosos, estilo desconcertante, cortes precisos.
NOVIDADE
Em 1963, Rubem Fonseca era, em suma, uma novidade, tanto na temática quanto na técnica -o que em literatura não acontece todos os dias.
"Associo o impacto a dois fatores: a emergência da voz de uma classe social que não costumava falar com voz própria e o surgimento de um novo registro de representação da violência", diz Idelber Avelar, professor de literatura na Universidade de Tulane, nos Estados Unidos. "Os contos de Fonseca trazem a voz de um lumpemproletariado até então desconhecido na literatura brasileira, personagens que não aparecem como meras vítimas silenciosas. Surgem como agentes da ação e portadores de um discurso que escandaliza o leitor de classe média."
Estudioso da obra de Rubem Fonseca desde 1972, Deonísio da Silva considera o escritor uma resposta, urbana e alienígena, a Guimarães Rosa: "Depois de 'Grande Sertão: Veredas' [1956], ficou a pergunta: 'Como se escreveria dali por diante?'. Fonseca chega com outro olhar, outros temas, outros personagens. Nada nele é parecido com os que o antecederam, e ele parece não receber influência de ninguém no Brasil. Sua obra está atrevidamente calcada em modelos literários vindos dos EUA".
Em futuros escritores, a identificação foi imediata. Lilian Fontes, autora de três romances -no mais recente, "De Olhos Bem Abertos" (2011), a narradora cita textualmente o conto "Gazela", de "Os Prisioneiros"-, era uma adolescente de 13 anos quando, em 1972, leu o livro de estreia de Fonseca.
"A narrativa em primeira pessoa, seca, e o uso de termos chulos mostravam um autor que tinha como premissa não poupar o leitor. Aquele livro de poucas páginas me desvendou um mundo."
Fonseca voltaria a semear assombro com uma nova seleção de contos, "A Coleira do Cão", lançada pela GRD em 1965.
A rigor, o primeiro e o segundo livros poderiam fazer parte de um único volume, tal a coesão de abordagens e estilos. "A Força Humana", que abre a coletânea, dá sequência a "Fevereiro ou Março" e foi descrito pelo crítico Wilson Martins, habitualmente avaro em elogios, como não apenas "um dos melhores contos brasileiros até hoje escritos" mas "um dos melhores contos da literatura universal".
Destaca-se ainda o conto-título, no qual um quase lírico delegado de polícia faz uma incursão por uma favela, bem antes de elas se tornarem bocas de tráfico e pontos de visitação turística. Mais pela dicção que pelo cenário, "Madona" é talvez o conto mais carioca do mineiro de Juiz de Fora, chegado ao Rio aos oito anos.
Fato raro (ou eram outros tempos?) que um segundo livro de autor caseiro, e ainda mais de contos, gênero olhado com desconfiança por leitores, editores e críticos, despertasse tal expectativa como a que se ergueu em torno de "A Coleira do Cão", merecendo até nota na coluna social de Ibrahim Sued no "Diário de Notícias". No "Suplemento Literário de Minas Gerais", Assis Brasil, depois de considerar o autor "um dos melhores contistas brasileiros", perguntava-se se ele iria prosseguir no conto ou "sairá para novas pesquisas".
Pode-se dizer que, com "Lúcia McCartney", publicado pela pequena Olivé em 1969, Rubem Fonseca não só continuou preferindo os relatos curtos como também realizou, com eles, pesquisas: "Corrente" conta-se em apenas 14 linhas, e "A Matéria do Sonho", num único parágrafo de quase dez páginas.
A crítica voltou a incensar o trabalho -que escapou de ser batizado com o infeliz, embora analiticamente sugestivo, título de "Ficção e Não" e ganhou o nome de uma personagem prostituta, espécie de Bruna Surfistinha "avant-garde".
Fábio Lucas elaborou uma tabela explicativa: "Atitude do autor: desafio. Arma principal: o impacto. Objetivo: a comunicação. Razão do êxito: o rigor inventivo e a radicalização da experiência. Maior temor: o academismo. Pecado (venial): a repetição". Sérgio Sant'Anna cravou, simplesmente: "É o mais importante livro de ficção brasileira dos últimos anos".
TERREMOTO
"Feliz Ano Novo", foi o primeiro livro de Rubem Fonseca que Tony Bellotto leu. "Eu estava com 14 anos e foi como se um terremoto tivesse atingido a minha casa em Assis", conta o escritor e roqueiro. Ali, na quarta reunião de contos do autor, "estava uma realidade submersa, que não aparecia no meu dia a dia, mas que tinha muito mais a ver com a verdadeira realidade do que tudo que eu via acontecer a meu redor".
O livro, editado em 1975 pela Artenova com despojado projeto gráfico (diagramação de relatório, sem orelhas nem prefácio, capa amadora), marca, para Silviano Santiago, o fim do primeiro dos "grupos harmoniosos e diferenciados" em que o ensaísta divide a obra de Fonseca. "Cada relato curto descarna a cordialidade do brasileiro pela análise do destempero e da violência que cimenta o cotidiano urbano das classes altas, médias e populares", descreve.
"Feliz Ano Novo" traz três das peças curtas mais citadas e estudadas na obra do escritor: o conto-título -em que três párias invadem uma festa de Réveillon numa casa de ricos- e o dístico "Passeio Noturno I e II" -em que um executivo usa o atropelamento de pessoas como exercício de relaxamento.
"Mais que a brutalidade da violência gratuita cometida por um personagem de classe média alta, choca-nos a fato de que o escritor tenha dado voz a esse personagem. A narrativa em primeira pessoa é a chave da perplexidade gerada pelo conto", nota Idelber Avelar. "A violência não aparece inscrita dentro de um projeto emancipatório ou de possibilidade de redenção. Ela está representada na sua mais pura brutalidade, fora de qualquer consideração ética."
Em novembro de 1976, depois de vender 30 mil exemplares, "Feliz Ano Novo" teve publicação e a circulação proibidas pela censura. Exemplares foram recolhidos nas livrarias pela Polícia Federal, sob a alegação "de exteriorizar matéria contrária à moral e aos bons costumes". Foi liberado em 1989, depois de longa batalha judicial.
Quando o quinto livro de contos, "O Cobrador", deixou a gráfica da Nova Fronteira, em outubro de 1979, esperava-se uma continuação ou elaboração de "Feliz Ano Novo", que, de alguma forma, respondesse à ditadura. Mas ali havia um Rubem Fonseca na muda -ou num "momento de indecisão", segundo Wilson Martins. Ali, fizeram entrada em sua obra as alusões a outros autores e gêneros -"H.M.S. Cormorant em Paranaguá" tem um quê de ensaio- e não por acaso três das histórias são narradas por escritores.
O advento de um novo ciclo criativo se confirmou em 1983, com "A Grande Arte", seu segundo romance - o primeiro, "O Caso Morel, saíra dez anos antes.
Paródia do gênero "hard-boiled", denúncia do capitalismo criminoso, com personagens grotescos e um protagonista charmoso (o advogado/detetive Mandrake, egresso de três contos), o livro fez com que Rubem Fonseca -que já desfrutava de boa recepção crítica no mercado internacional, principalmente de língua espanhola- fincasse os pés de vez na lista dos mais vendidos do Brasil, chegando a superar o aparentemente imbatível Jorge Amado.
"Rubem Fonseca criou uma ficção que se liga ao que Machado de Assis fez no século 19: unir sofisticação e entretenimento", acredita o escritor Flávio Carneiro, cujo romance "O Campeonato" (2002) gira em torno do conto homônimo, exemplar de ficção científica que integra "Feliz Ano Novo". "A diferença é que Fonseca soube se apropriar de um gênero popular, o policial, para fazer uma literatura que reescreve a tradição."
"A linha investigativa foi a forma que ele encontrou para entrar na narrativa longa", acredita Lilian Fontes. "Ele nutriu-se dos ingredientes de um gênero rotulado de subliteratura para introduzir pensamentos sofisticados, citações filosóficas, uma erudição que corre paralela ao enredo."
ROMANCES
Silviano Santiago identifica nos romances -depois de "A Grande Arte", vieram, em sequência, "Bufo & Spallanzani" (1986), "Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos" (1988) e "Agosto" (1990)- um segundo conjunto dentro do corpo da obra. "São fartamente documentados e elaborados. São alegóricos e, contraditoriamente, viscerais. A visão de mundo que projetam vem embebida em carne, suor e sangue", diz o crítico, para quem a etapa finda com "O Selvagem da Ópera" (1994).
"Cito 'A Grande Arte' e 'Agosto' como exemplos de romances em que ele conseguiu manter a tensão e a excelência de seus contos. O homem vence por nocaute, sempre", elogia Tony Bellotto.
Flora Sussekind, que se debruçou algumas vezes como crítica sobre a obra de Fonseca, não enxerga nos seus romances o vigor que encontra em parte dos contos.
"Nas narrativas mais longas, certos truques, certos achados narrativos, certas formas de corte ficavam mais evidentes como técnica. Os textos perdem nitidamente a força: o romance expôs muito a mecânica dele e, a meu ver, ele procurava resolver a dificuldade com o relato mais longo via registro genérico (histórico, policial) ou com soluções narrativas predeterminadas. E isso parece ter ecoado ainda em boa parte da série de sub-Rubem Fonsecas que se multiplicou na ficção brasileira."
Na opinião da pesquisadora, essas dificuldades se reapresentariam posteriormente também nos contos, forma que Fonseca retomaria em "Romance Negro e Outras Histórias" (1992), "O Buraco na Parede" (1995), "Histórias de Amor" (1997), "A Confraria dos Espadas" (1998), "Secreções, Excreções e Desatinos" (2001), "Pequenas Criaturas" (2002), "Ela e Outras Mulheres" (2006).
Na vizinhança dos anos 2000, "A Confraria dos Espadas" é o marco inicial do terceiro conjunto identificado por Silviano Santiago para definir a obra de Fonseca.
Com o volume, inaugura-se uma etapa que dá vez a "escritos que escapam à bitola estreita de gênero (conto e romance)". "São apenas textos. Visam a processar, tanto no sentido informático do verbo quanto no seu sentido jurídico, o senso comum vitorioso e a ditadura dos bons sentimentos comunitários, que passou a moeda política no início deste milênio."
A essa altura, porém, a crítica, com as exceções de praxe, já tinha virado o disco. A produção mais recente foi vista como "vulgar", "imediatista", "banal", "blasé", "autocaricata", "glamourizada". Em resenha na Folha sobre "Secreções, Excreções e Desatinos", Alcir Pécora escreveu que o livro não chegava "a cheirar nem a feder".
Ainda assim, apesar das oscilações e do peso da idade -chegou aos 88 anos em maio-, Fonseca teve também o reconhecimento de dois dos prêmios mais importantes para o mundo ibero-americano: o Camões, para autores em língua portuguesa, e o Juan Rulfo, dado pelo México, ambos em 2003.
Tony Bellotto expõe com veemência a opinião dos que não acreditam que a mágica do escritor possa ter esfriado: "A literatura de Rubem Fonseca continua de pau duro. Só não vê quem não quer. Ou quem tem medo de pau duro."
TROCA
Em 2009, Rubem Fonseca fez uma inesperada troca de editora, deixando a Companhia das Letras, que o publicava desde "Agosto", pela Agir, do Grupo Ediouro (que também detém hoje a Nova Fronteira). Disse-se à época que a negociação, conduzida pela agente literária Lúcia Riff, tinha sido fechada em R$ 1 milhão.
Hipóteses para explicar o episódio pipocaram. Em 18 de março de 2010, reportagem da Folha cravou: a relação de quase 20 anos entre Rubem Fonseca e Luiz Schwarcz, "publisher" da Companhia, avinagrou após a editora recusar o romance "Gonzos e Parafusos", de Paula Parisot, uma das discípulas do escritor. Fonseca negou; Schwarcz não quis comentar.
No mesmo ano chegou às livrarias um novo romance, "O Seminarista", e teve início o relançamento de sua obra completa, com "Os Prisioneiros" e "Lúcia McCartney", em edições coordenadas pelo jornalista Sérgio Augusto, dotadas de posfácios contextualizando os títulos com a fortuna crítica em torno de seu lançamento.
Seguiram-se, também, mais dois inéditos, ambos publicados em 2011, o volume de contos "Axilas e Outras Histórias Indecorosas" e "José", de fundo memorialístico.
As vendas vão bem, obrigado: no caso dos títulos novos, ficaram na casa dos 18 mil exemplares nos três meses iniciais de lançamento, sem contar vendas especiais e adoções. Entre as reedições do catálogo, cada título vende uma média anual de 2.000 exemplares, também sem contar as adoções.
Ex-editor de Rubem Fonseca na Agir, Paulo Roberto Pires defende a vitalidade do autor, tanto o de hoje como o de ontem: "Sinto que falta uma reflexão mais aprofundada sobre um escritor de obra tão extensa e marcante. Houve um tempo em que era moda gostar; mais recentemente, virou moda não gostar. Assim funciona nossa bolsa de valores literários".
"Acontece um fenômeno com grandes autores", afirma Idelber Avelar. "Impõe-se uma determinada leitura, geram-se muitos imitadores, mas a obra renova sua legibilidade com o tempo. Pode acontecer com Rubem Fonseca."
É aguardar "Amálgama" para ver se o velho Fonseca reinventa sua grande arte.