O que é o dinheiro? Mesmo economistas capazes de usar sem constrangimento expressões técnicas como "transações repo", "obrigações caucionadas de dívida" e "relaxamento quantitativo" podem enfrentar dificuldades para oferecer uma resposta.
O economista Felix Martin, em "Money: The Unauthorized Biography" (Dinheiro: a Biografia não Autorizada, ed. Vintage Digital), dá o seu relato sobre esse assunto.
Para ele, o dinheiro é para nós aquilo que a água é para os peixes -ocupa posição tão central em nossa existência que compreendê-lo requer certo esforço conceitual.
A primeira coisa a apreciar aqui é que o dinheiro envolve mais que moedas e cédulas.
Martin acredita que uma concepção errônea quanto à natureza do dinheiro --a de que se trata apenas de uma mercadoria utilizada para executar transações e pode, portanto, ser tratada como qualquer outro bem de mercado-- é a raiz da negligência das autoridades econômicas com relação a bolhas e de sua condução inapropriada das crises financeiras.
O livro começa com duas ilustrações exóticas do argumento de Martin.
A primeira é a ilha de Yap, no Oceano Pacífico, cuja moeda era o fei, grandes rodas de pedra com até 3,6 metros de diâmetro.
Elas raramente eram movidas para facilitar transações --mais ou menos como acontece com as modernas contas bancárias eletrônicas, as fei são representações simbólicas de valor, e podem mudar de dono sem mudar de mãos.
A segunda é a poesia homérica. A Ilíada e a Odisseia, escreve Martin, são "uma descrição vívida e detalhada da era imediatamente anterior à invenção do dinheiro".
Os dois exemplos servem para ajudar a solapar um dos alvos principais do livro: a ideia convencional de que o dinheiro foi inventado para superar as dificuldades práticas do comércio por escambo.
As economias de subsistência dos épicos homéricos não dispõem de dinheiro mas tampouco se envolvem em escambos -são transacionados bens saqueados em guerras, ocorrem trocas de presentes e rituais de compartilhamento em forma de sacrifícios.
Já o caso de Yap mostra, de seu lado, que o dinheiro não precisa ser trocado fisicamente pelos bens comerciados para que desempenhe um papel no comércio.
DIREITOS
Para Martin, o dinheiro é assim tão simples --e assim tão difícil de definir.
Consiste de obrigações desincorporadas de relações sociais específicas, ou seja, de direitos que podem ser livremente transferidos a terceiros. Isso serve mais obviamente ao meio circulante legal, ou seja, às moedas garantidas por um soberano.
Mas formas privadas --vales, sistemas privados de compensação-- também funcionam como dinheiro, na medida em que possam satisfazer a esses critérios.
Como Martin mostra, a história do dinheiro é uma narrativa da luta dos governantes contra os usuários e provedores privados de crédito -acima de tudo, os banqueiros. De fato, a história de nossa atual crise é a do crédito privado rompendo seus grilhões.
Martin estudou os clássicos, além de economia, e seu livro está tão repleto de alusões literárias e históricas que a história quase se conta sem ajuda. Mas há pouco de original na definição do autor para o dinheiro como crédito transferível, em lugar de peças de metal.
Seu relato das dúvidas sociais e filosóficas sobre a sociedade de mercado, aliás, deve muito ao livro "As Paixões e os Interesses" (1977), de Albert Hirschman, publicado no Brasil pela Record.
Não o afirmo como crítica, porque o trabalho de Martin é uma síntese soberba que merece ser lida nem que apenas por seu poder de sintetizar, mas a análise talvez pareça limitada para os leitores que já conhecem o tema.
É simplista sugerir que a economia como profissão não anteviu a crise (o que é verdade) por se ver o dinheiro como uma simples mercadoria de troca.
Mas se a tese de Martin tropeça ocasionalmente, sua narrativa jamais o faz. Como introdução lúcida e pitoresca aos 3.000 anos de nossa história monetária, o livro vale seu peso em fei.
Money: The Unauthorized Biography
AUTOR Felix Martin
EDITORA Vintage Digital
QUANTO R$ 69,95 (formato Kindle; 336 págs)
MARTIN SANDBU é editorialista econômico do "Financial Times"
Tradução de PAULO MIGLIACCI
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