
Em 1863, quando Tolstói começou a redigir o romance, ele já era um escritor famoso e um homem marcado pelas experiências mais profundas de sua vida e de sua época, ambas conturbadas. Vejamos, rapidamente, o porquê das atribulações.
Nascido em Iásnaia Poliana, a propriedade da família na região de Tula, não  longe de Moscou e hoje transformada em museu, o escritor perdeu a mãe aos 2 anos  e, aos 7, o pai a quem amava, um homem jovial e de boa índole, de acordo com  suas recordações, cuja morte ficou pouco esclarecida. Oficialmente provocada por  infarto, poderia ter sido obra de servos (segundo a biografia Liev Tolstói de V.  Chkóvski), pois uma vultosa quantia de dinheiro levada pelo pai a Tula jamais  foi encontrada.
Durante seus primeiros anos, Tolstói passou a ser cuidado consecutivamente  por duas tias até 1844, quando, deixando para trás sua "infância" - título de  sua primeira grande novela, logo seguida por Adolescência e Juventude - se  inscreveu na Universidade de Kazan, na Faculdade de Línguas Orientais, curso que  não concluiu - embora, graças a suas famosas técnicas de autodidatismo, tenha  aprendido várias línguas. Não terminou também a Faculdade de Direito, para a  qual se transferiu no ano de 1847, em plena fase de desregramento juvenil:  dívidas pesadas de jogo, bebida, bordéis e, em São Petersburgo, intensa e  inconsistente vida social.
Confuso, sem saber que rumo tomar, Tolstói acabaria voltando para Iásnaia  Poliana, de cujo funcionamento precário pretendia se incumbir. No entanto, as  frequentes viagens a Moscou e São Petersburgo e o contato com amigos de péssima  reputação o desviaram do propósito. Finalmente, em 1851, seguindo o exemplo do  irmão mais velho, Nikolai, que era oficial e que fora visitá-lo em Iásnaia  Poliana, alistou-se no Exército e partiu com ele para as montanhas do Cáucaso e,  mais tarde, para a Crimeia. Foram cinco anos de impressões indeléveis e de  experiências fundamentais, como a da guerra da Crimeia, em que Liev, afiado pela  vasta correspondência que mantinha e pela escritura de seus diários, decidiu  experimentar-se como escritor. Ao seu primeiro livro Infância (1851-52) de  imediato sucesso, seguiram outros de grande valor literário, como os Contos de  Sebastópol (1855-56), Três Mortes (1858), Felicidade Conjugal (1859), Kholstomer  (1860-63). Em 1860 seu irmão Nikolai morreu de tuberculose e Tolstói, que já  abandonara a carreira militar em 1856; que já tentara em vão emancipar três  centenas de mujiques - e devido aos altos encargos previstos pela lei czarista  para os servos nessa condição, estes lhe devolveram a alforria -; que já viajara  pela Europa, sempre vítima de recaídas nos vícios que o assolam, encontrava-se  novamente confuso e desnorteado. Assim ele escreve esta fase em um de seus  diários:
"Eu provoquei a morte de homens na guerra, duelei e sacrifiquei adversários,  desperdicei no jogo a substância extorquida do suor dos mujiques, puni-os  cruelmente, farreei com mulheres e enganei a outros (...) no entanto, era tido  por meus pares como um homem relativamente moral. Esta foi minha vida, por dez  anos".
Em 1861 refugiou-se novamente em Iásnaia Poliana, onde havia aberto uma  escola para os filhos dos camponeses, para os quais escreveria as famosas  Cartilhas e, em 1862, casou-se com Sófia Andréievna Behrs, de 19 anos, a quem,  num gesto de alta confiança e risco, havia dado para ler seus diários íntimos, e  com quem teve 13 filhos, durante uma relação de colaboração intensa, apesar dos  altos e baixos, que durou até a morte do escritor.
O que importa assinalar a esta altura é que, na redação de Guerra e Paz, que  começou um ano após o casamento e concluiu-se seis anos depois, o papel de Sófia  foi fundamental. Não apenas pelo fato notório de ela ter recopiado as provas do  livro sete vezes, ter organizado os capítulos. É a Sófia que se deve o fato de o  ficcionista ter relegado a parte não literária do romance à II seção do epílogo,  exemplo de como, segundo as reminiscências de Górki, descritas em 3 Russos e  Como me Tornei um Escritor (Martins Fontes), o gênio sucumbia "a essa sua  obstinada e despótica obsessão de transformar a vida do conde Liev Nikoláievitch  Tolstói na vida do Santo Padre, nosso beatífico boiardo Liev".
À Sófia se atribui ainda a influência na caracterização das muitas  personagens femininas do romance, mormente no que se refere à sua psicologia -  conforme testemunho de vários autores, entre os quais, de novo, Maksim Górki.  Ela inclusive serviu de modelo, em muitos aspectos, para a criação de Natacha  Rostova, a heroína do romance, o tipo de mulher quase infantil, cheia de vida e  anti-intelectual que Tolstói mais apreciava e que repetiu na Kitty de Anna  Kariênina. A esta última, que dá nome ao romance, como às mulheres mais  sofisticadas de seus escritos, ele hostilizava. No dizer de Górki: "Será essa a  hostilidade do homem que não soube haurir tanta felicidade quanta poderia, ou a  hostilidade do espírito contra ‘os humilhantes ímpetos da carne’?" Ímpetos  esses, diga-se de passagem, que o conde, que se considerava um libertino por  natureza, haveria de fustigar em muitos de seus livros, como em Padre Sérgio  (1890-1898) e em Sonata a Kreutzer (1889-90), nos quais acabava propondo a  castidade como estado ao qual o ser humano deve aspirar.
Quanto aos personagens masculinos de Guerra e Paz - todos actantes  ou testemunhas da ação -, a trama, sempre dinâmica, constrói-se em volta de dois  deles, históricos: Napoleão Bonaparte, comandante do Exército francês, quando de  sua invasão da Rússia em 1812, durante o reinado do czar Alexandre I, e Mikhail  Illárionovitch Kutúzov, líder do Exército russo, o vencedor, que, em suas  retiradas, se valeu do proverbial "general Inverno", e de sua estratégia  paciente e sub-reptícia, também chamada "oriental".
Mas há uma série de outras figuras "reais" em Guerra e Paz, baseadas  em pessoas da família ou das relações de Tolstói. Os condes Natália e Iliá  Rostov, pais de Natacha, retratariam seus próprios avós; o conde Pierre  Bezúkhov, personagem central, seria muitas vezes portador das crenças e  contradições do próprio autor. Outros seriam inspirados por figuras de  conhecidos: o príncipe Andrei Bolkónski, cínico e filosófico mas devotado aide  de camp do general Kutúzov, traído em seu amor de viúvo pela adolescente  Natacha, que se deixou seduzir pelo belo e amoral Anatol Karáguin, irmão de  Hélène, a igualmente devassa primeira mulher de Pierre; Nikolai Rostov, irmão de  Natacha, que acaba casando com a rica e ascética Maria Bolkónskaia, irmã de  André, e reconstituindo as posses da família, uma vez finda a guerra. Entre os  não nobres destaca-se Platon Karatáiev, o protótipo do mujique russo, segundo  Tolstói, íntegro, leal e inspirador, a quem Pierre encontra entre os  prisioneiros dos franceses, quando ele mesmo é capturado durante a sua tentativa  de assassinar Napoleão.
Pesquisas históricas, testemunhais, experiências da vida no Exército, na  guerra, nos salões da aristocracia, no campo entre os mujiques, viagens ao  estrangeiro, estudos e entrevistas com filósofos, sociólogos, pedagogos, sua  própria prática como senhor de terras, agricultor, artesão (Tolstói gabava-se de  fazer suas próprias botas), professor e autodidata - tudo isso se funde no  enredo nunca estático, sempre interessante, do romance.
O processo de confrontação de pontos de vista ao qual Tolstói submete seus  personagens principais é muito enriquecedor, embora interessado (há sempre um  deles que o autor privilegia). Napoleão, para citar um exemplo - cuja  "genialidade" é enaltecida por tantos entusiastas, entre os quais Pierre, quando  ainda jovem e imaturo, no embate que inicia o livro no salão de Anna Pávlovna -,  é submetido, conforme lembra o tradutor no prefácio, à análise que dele faz um  servo, capturado pelos franceses. Nem o general Kutúzov escapa disso, apesar de  vitorioso no fim: seus discutidos retrocessos e seu desconhecimento do  desenrolar dos combates desiludem muito rapidamente seu ardoroso aide de camp, o  príncipe Andrei.
Escrito numa linguagem à qual o tradutor soube ser fiel, ora requintada e  entremeada por frases em francês como a da nobreza, ora simples e direta como a  do povo, dos servos, dos soldados, mas sempre clara - " assassina" , como a  definirá Górki, que conheceu Tolstói em 1900 -, o livro é um manancial de  recursos de estilo. Alguns, como foi assinalado, por exemplo, por Boris  Schnaiderman, até mesmo cinematográficos: "De repente, nos grandes músculos e  rugas do rosto do conde, surgiu um tremor. O tremor ficou mais forte, a boca  bonita se encolheu (só então Pierre entendeu a que ponto o pai estava perto da  morte), ouviu-se da boca encolhida um som obscuro e rouco". E aí comparecem um  braço desobediente, uma cabeça moribunda, um sorriso frouxo, etc. a comandarem a  ação do turno da vigília. É o famoso uso da metonímia, fator integrante do tão  estudado estranhamento em Liev Tolstói.
Quanto às teses, algumas podem ser discutíveis (como a de Sonata a Kreutzer,  por exemplo), mas são sempre atuais e magistralmente defendidas. Entre elas, uma  vez a paz restabelecida, está justamente a tese ligada à questão agrária que,  como senhor de terras, tanto interessava a Tolstói. Os propósitos e as práticas  que animam Nikolai Rostov e a princesa Mária Bolskónskaia, no campo onde  residem, são os mesmos, comprovadamente eficientes, que animarão Levin e Kitty,  dez anos mais, em Anna Kariênina; apesar das leituras dos mais variados métodos  e opúsculos importados, só há um jeito que funciona para tratar das terras e dos  mujiques por lá: o cuidado e a tradição que caracterizam o jeito russo. Afinal,  como diz a bondosa e feia princesa Mária ao irmão Andrei, repetindo as palavras  de Sterne: "Amamos as pessoas menos pelo bem que elas nos fazem do que pelo bem  que fazemos a elas".
AURORA F. BERNARDINI É PROFESSORA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA RUSSA NA  UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, TRADUTORA E ENSAÍSTA
Edição traz verbetes sobre personagens e téra debate em  SP
A primeira tradução de Guerra e Paz no País feita diretamente do  russo sai numa edição de 7 mil exemplares, em dois volumes, capa de tecido,  miolo em papel-bíblia e projeto gráfico especial. Mapas, verbetes sobres  personagens e fatos históricos que aparecem na obra e sugestões de leituras  completam a edição. Para marcar o lançamento do romance, a editora Cosac Naify  realizará, no dia 1º de dezembro, das 19h30 às 22h, no Itaú Cultural (Av.  Paulista 149, São Paulo, tel. 2168-1777), um debate em torno da obra e de seu  autor. Na mesa estarão o tradutor Rubens Figueiredo - que dedicou três anos ao  trabalho (leia texto na página ao lado) -, Laura de Mello e Souza, historiadora  e professora de história moderna da Universidade de São Paulo, e Elena Vássina,  professora de literatura russa também na USP. A mediação estará a cargo do  jornalista Daniel Benevides, coordenador de comunicação da editora.
GUERRA E PAZAutor: Liev Tolstói
Tradução: Rubens Figueiredo
Editora: Cosac Naify
(2.536 págs., R$ 198)
Tradução: Rubens Figueiredo
Editora: Cosac Naify
(2.536 págs., R$ 198)
Fonte: jornal O Estado de São Paulo
 
 
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